Ontem mesmo, Jaime Silva, ministro da agricultura, acusou o BE de "incentivar aqueles jovens" e insinuava que este partido teria estado por trás da acção na herdade da Lameira. O bloco não tem nada, rigorosamente nada, a ver com os acontecimentos ou o movimento que lhe esteve na origem. Nem os seus jovens, que no dia dos acontecimentos se encontravam acampados... mas a 600 quilómetros de distância.
O único elemento sobre o qual se funda esta inadmissível extrapolação por parte do ministro é o facto de eu, há três dias, ter expresso "simpatia com o gesto".
Escrevi o que escrevi a título estritamente pessoal, e no blog Sem Muros reconheço que errei (quem desejar que o consulte). Mas, mesmo que assim não tivesse sido, é no mínimo estapafúrdio associar uma manifestação de simpatia à posteriori com uma "conspiração antecipada". Não é só estapafúrdio. Um ministro não pode acusar ou insinuar sem provas.
O Bloco desenvolve as suas acções às claras e de rosto destapado. Pode concordar-se ou não com elas. Mas quando age, envolve os seus próprios dirigentes. Não ficam na retaguarda.
As raízes da ira
Não posso deixar de me referir ao modo como os "miúdos" têm sido tratados: de betinhos a vândalos, de terroristas a drogados e de desocupados a comunas, tudo vale e continua a valer.
Sou de um tempo onde, tantas vezes à falta de melhores argumentos, se resolviam diferendos nas esquerdas com epítetos relativos à origem de classe ou ao modo de vestir e viver. Assisti agora, 30 anos depois, a essa ressurreição e não gostei do que vi. Muitos dos actuais liberais bem pensantes também não deviam gostar. Por todas as razões e porque também eles, em tempos idos, apanharam com esse enxoval de "acusações".
Na sublevação dos indignados a pedra de toque é a questão da propriedade que está em causa que dá o tom. Todos os fantasmas saltaram de imediato. Esta mesma indignação jamais veria a luz do dia se o caso fosse o de um despedimento, ou o de um pai de um "betinho" fugindo ao fisco. Ou mesmo o de um betinho em bolsa, limpando pequenas poupanças em operações legais, envolvendo montantes bem maiores do que 3900 euros.
Classifiquei este delírio como uma "tempestade num copo de água". Na realidade é bem mais do que isso. É instinto de classe e espírito de guerra. O abuso dos qualificativos é particularmente grave quando chega a conceitos como o de "terrorismo". Em entrevista à SIC notícias, Rui Pereira, ministro da administração interna, não hesitou em qualificar o acto de "eco-terrorismo soft". O ministro devia saber que quando se perde o sentido das proporções, se acordam consequências escondidas: a de banalizarmos, isso sim criminosamente, o valor das palavras.
Uma portaria do absurdo
Discutiu-se mais o que aconteceu do que o problema para que quis chamar a atenção. Mas a quantos, com argumentos bem razoáveis, invocaram o problema do Estado de Direito, vale a pena contar uma pequena história. Em 2003, o decreto-lei 72 regulou as condições em que poderia ocorrer o cultivo de transgénicos. Nele se incluía um anexo relativo à necessidade de defender as pessoas das inalações de pólen e um fundo de compensação para possíveis perdas de agricultores de milho híbrido. Na lei seguinte, de 21 de Setembro de 2005, misteriosamente, as "minudências" caem. Em troca, cria-se a figura "zonas livres" do cultivo de transgénicos, cuja regulamentação é diferida para uma portaria que sairia em Dezembro do ano passado.
Que nos diz a portaria? Que a fixação de zonas livres é fixada pelas assembleias municipais. Parece razoável, muito bem até. Ou seja, a interdição de cultivo passaria a ser uma competência local, decidida pelo parlamento local. Mas a portaria também diz como acabar com a prerrogativa: impõe que dois terços dos agricultores assinem uma declaração prévia nesse sentido - um processo burocrático, tudo menos ingénuo - e , logo a seguir, que a decisão pode ser invalidada pela simples vontade de um agricultor se dedicar aos transgénicos. É um completo absurdo. De que adianta a maioria democraticamente eleita decidir (no Algarve foi por unanimidade), se um só - e foi o caso - invoca a sua vontade e direito, e com esse gesto, anula a decisão?
O essencial e o acessório
Cada um se agarra ao que lhe parece essencial. Para o bloco, o essencial é a resposta á questão: "transgénicos no prato"? Como bem sublinha Nuno Pacheco, em editorial do Público saído hoje, "há mais dúvidas do que certezas quanto aos transgénicos". É exactamente essa a questão. E é exactamente porque há "mais dúvidas do que certezas", que o princípio da precaução se recomenda como critério da decisão política.
Há pouco mais de um mês, o governo alemão, insuspeito de simpatias ecologistas, proibiu a comercialização de uma semente de milho transgénico da Monsanto, a MON 863 porque se confirmou, após aturados exames, que o consumo desse milho diminuía a resistência dos rins e dos fígados. Vale a pena ir mais longe?
Podemos discordar, de vários modos, da acção levada a cabo. Mas não se pode ignorar o problema para que ela quis alertar. Ele radica na sede de lucros das multinacionais que detêm as patentes das sementes. É aí, e não nos agricultores que delas dependem, que se encontra o nó górdio deste debate.
Miguel Portas
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
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