Do caso dos 23 cidadãos marroquinos que acabaram detidos no CIT do Porto há várias ilações a tirar, parecendo-nos importante reflectir sobre a lei de imigração, o papel do governo de Sócrates, na figura do seu ministro Rui Pereira, e, enfim, sobre o ambiente geral em que portugal está mergulhado.
Comecemos pela lei. No seu articulado lê-se que a imigração ilegal implica o repatriamento. Muito haveria para dizer sobre este princípio, sobre o direito que a história da humanidade consagra a todas as pessoas de se moverem livremente na busca de uma vida melhor, sobre o combate às causas verdadeiras das migrações África-Europa. Não será neste texto que o faremos. Façamos de conta que estamos felizes a viver na sociedade tal como ela se organiza presentemente e prossigamos.
Na lei lê-se também que a acção de deportação pode ser adiada, se os detidos colaborarem com as autoridades no desmantelamento da rede de tráfico de migrantes que os enviou para a Europa. Trata-se, note-se, do simples adiar da acção e não do seu cancelamento. Mal o ministro da administração interna (m.a.i.) decida que já não são necessários à investigação, manda que sejam repatriadas, leia-se, devolvidas para as mãos dos mafiosos que acabaram de denunciar. Um governo que estivesse verdadeiramente preocupado em combater as redes de tráfico de seres humanos não teria uma política de imigração que se reflectisse numa lei que, ao desincentivar a denúncia, protege, de facto, as máfias. Se se quiser combater realmente as redes de imigração ilegal terá que se começar por incentivar a sua denúncia, oferecendo anonimato completo e autorização de residência aos que colaborarem.
Mas voltemos um pouco atrás. Ter-se-ão perguntado se não haveria engano quando, sabendo que vivemos no apregoado Estado de Direito, se afirmou que a decisão final é do ministro. Ter-se-ão perguntado bem, mas a verdade é que terá havido um golpe de Estado silencioso e uma decisão que deveria ser judicial, legalmente fundamentada, com direito a defesa e recurso, é, afinal, administrativa, dependente do espírito momentâneo do m.a.i. e da sua sensibilidade própria.
Uma lei destas, que protege as máfias e dá direitos discricionários ao governo, não pode continuar a existir.
Mas este caso dos 23 marroquinos sem papéis pôs, ainda, a nu a tal sensibilidade própria de Rui Pereira, da qual dependia, muito provavelmente, a diferença entre a vida e a morte de muitos deles. Portugal anda entretido a ser o menino bonito da UE. Preparava-se para prender os 23, sacar-lhes a informação que considerasse necessária e repatriá-los, no maior dos secretismos. Ouviríamos depois um comunicado onde se louvaria a atitude firme e pronta do executivo. Mas, porque, durante a presidência portuguesa da UE, não foram só os poderosos que fortaleceram os seus laços, o tiro saiu-lhes pela culatra.
Quando um assunto apaixona uma parte da tão louvada sociedade civil, pode-se esperar que um governo que se considera democrático fique feliz, uma vez que terá a oportunidade de ouvir questões, prestar esclarecimentos, aproveitar aportes de outros membros da comunidade que gere. Nada disso aconteceu. Em vez de se abrir, o governo fechou-se na sua concha, colocou tudo sob seu controlo e impediu, por vezes para além do limite da legalidade, que a informação circulasse.
Os detidos ficaram incomunicáveis. Várias associações do Porto pediram para os visitar. Nem resposta obtiveram. Só José Soeiro, e apenas por ser deputado, conseguiu chegar à fala com os marroquinos. Mesmo ele foi impedido de entrar duas vezes, a primeira, no dia 22, quando os primeiros foram secretamente deportados, porque o director do centro “está ausente”, como se não houvesse uma cadeia de comando dentro do CIT do Porto, a segunda no fim da vigília de solidariedade, quando lhe foi dito que “eles já estão a dormir”. Cinco minutos depois estavam a falar connosco, eles dentro, nós cá fora.
No caso da primeira leva de deportados, nem sequer as advogadas foram notificadas da expulsão. Chegou-se a dizer que o processo estava sob “Segredo de Estado”, não sabemos se assim chegou a ser ou não. Seria estranho se, afinal, se tratava apenas dum banal “caso de repatriamento ao abrigo da lei”. Aos detidos chegou a ser dito, por pessoal do SEF, que eles seriam expulsos, porque havia umas associações que estavam a fazer pressão para que isso acontecesse. Uma prática baixa, típica de polícias de sociedades arcaicas. Ou, talvez, o assumir de que o barulho da sociedade civil dá mau aspecto, o melhor é acabar com as coisas depressa, que se lixe lá a lei e o humanismo.
Estes cidadãos marroquinos, ao abrigo das mais recentes leis europeias de controlo de seres humanos, estão impedidos de tentar entrar no espaço europeu. A partir de agora não são apenas imigrantes ilegais. São pessoas banidas da UE, com fichas individuais centralizadas e disponíveis a todas as forças policiais do espeço Schengen, com possibilidade de virem a fazer da grande base de dados de indivíduos impedidos de entrar na “civilização ocidental”. Irão voltar, como já disseram que fariam, mais fragilizados, dando, de novo, dinheiro às máfias do tráfico humano, correndo, mais uma vez, risco de vida.
Portugal é, neste momento, um país onde há associações de imigrantes que se solidarizam com os marroquinos detidos e deportados, cujos membros aparecem nas mobilizações, mas que não subscrevem oficialmente os textos que se vão lançando, porque têm medo de represálias. São associações com ligações a vários níveis do Estado e que preferem não assinar coisas que critiquem algum aspecto da actuação governamental. Sócrates conseguiu.
Mas é também o país do jornalismo domesticado onde não há perguntas incómodas, a terra onde um profissional da informação está impedido de comunicar com os detidos e não protesta contra esse facto. Não se digna, sequer, a levantar a questão.
Via Sardera.blogspot.com
Comecemos pela lei. No seu articulado lê-se que a imigração ilegal implica o repatriamento. Muito haveria para dizer sobre este princípio, sobre o direito que a história da humanidade consagra a todas as pessoas de se moverem livremente na busca de uma vida melhor, sobre o combate às causas verdadeiras das migrações África-Europa. Não será neste texto que o faremos. Façamos de conta que estamos felizes a viver na sociedade tal como ela se organiza presentemente e prossigamos.
Na lei lê-se também que a acção de deportação pode ser adiada, se os detidos colaborarem com as autoridades no desmantelamento da rede de tráfico de migrantes que os enviou para a Europa. Trata-se, note-se, do simples adiar da acção e não do seu cancelamento. Mal o ministro da administração interna (m.a.i.) decida que já não são necessários à investigação, manda que sejam repatriadas, leia-se, devolvidas para as mãos dos mafiosos que acabaram de denunciar. Um governo que estivesse verdadeiramente preocupado em combater as redes de tráfico de seres humanos não teria uma política de imigração que se reflectisse numa lei que, ao desincentivar a denúncia, protege, de facto, as máfias. Se se quiser combater realmente as redes de imigração ilegal terá que se começar por incentivar a sua denúncia, oferecendo anonimato completo e autorização de residência aos que colaborarem.
Mas voltemos um pouco atrás. Ter-se-ão perguntado se não haveria engano quando, sabendo que vivemos no apregoado Estado de Direito, se afirmou que a decisão final é do ministro. Ter-se-ão perguntado bem, mas a verdade é que terá havido um golpe de Estado silencioso e uma decisão que deveria ser judicial, legalmente fundamentada, com direito a defesa e recurso, é, afinal, administrativa, dependente do espírito momentâneo do m.a.i. e da sua sensibilidade própria.
Uma lei destas, que protege as máfias e dá direitos discricionários ao governo, não pode continuar a existir.
Mas este caso dos 23 marroquinos sem papéis pôs, ainda, a nu a tal sensibilidade própria de Rui Pereira, da qual dependia, muito provavelmente, a diferença entre a vida e a morte de muitos deles. Portugal anda entretido a ser o menino bonito da UE. Preparava-se para prender os 23, sacar-lhes a informação que considerasse necessária e repatriá-los, no maior dos secretismos. Ouviríamos depois um comunicado onde se louvaria a atitude firme e pronta do executivo. Mas, porque, durante a presidência portuguesa da UE, não foram só os poderosos que fortaleceram os seus laços, o tiro saiu-lhes pela culatra.
Quando um assunto apaixona uma parte da tão louvada sociedade civil, pode-se esperar que um governo que se considera democrático fique feliz, uma vez que terá a oportunidade de ouvir questões, prestar esclarecimentos, aproveitar aportes de outros membros da comunidade que gere. Nada disso aconteceu. Em vez de se abrir, o governo fechou-se na sua concha, colocou tudo sob seu controlo e impediu, por vezes para além do limite da legalidade, que a informação circulasse.
Os detidos ficaram incomunicáveis. Várias associações do Porto pediram para os visitar. Nem resposta obtiveram. Só José Soeiro, e apenas por ser deputado, conseguiu chegar à fala com os marroquinos. Mesmo ele foi impedido de entrar duas vezes, a primeira, no dia 22, quando os primeiros foram secretamente deportados, porque o director do centro “está ausente”, como se não houvesse uma cadeia de comando dentro do CIT do Porto, a segunda no fim da vigília de solidariedade, quando lhe foi dito que “eles já estão a dormir”. Cinco minutos depois estavam a falar connosco, eles dentro, nós cá fora.
No caso da primeira leva de deportados, nem sequer as advogadas foram notificadas da expulsão. Chegou-se a dizer que o processo estava sob “Segredo de Estado”, não sabemos se assim chegou a ser ou não. Seria estranho se, afinal, se tratava apenas dum banal “caso de repatriamento ao abrigo da lei”. Aos detidos chegou a ser dito, por pessoal do SEF, que eles seriam expulsos, porque havia umas associações que estavam a fazer pressão para que isso acontecesse. Uma prática baixa, típica de polícias de sociedades arcaicas. Ou, talvez, o assumir de que o barulho da sociedade civil dá mau aspecto, o melhor é acabar com as coisas depressa, que se lixe lá a lei e o humanismo.
Estes cidadãos marroquinos, ao abrigo das mais recentes leis europeias de controlo de seres humanos, estão impedidos de tentar entrar no espaço europeu. A partir de agora não são apenas imigrantes ilegais. São pessoas banidas da UE, com fichas individuais centralizadas e disponíveis a todas as forças policiais do espeço Schengen, com possibilidade de virem a fazer da grande base de dados de indivíduos impedidos de entrar na “civilização ocidental”. Irão voltar, como já disseram que fariam, mais fragilizados, dando, de novo, dinheiro às máfias do tráfico humano, correndo, mais uma vez, risco de vida.
Portugal é, neste momento, um país onde há associações de imigrantes que se solidarizam com os marroquinos detidos e deportados, cujos membros aparecem nas mobilizações, mas que não subscrevem oficialmente os textos que se vão lançando, porque têm medo de represálias. São associações com ligações a vários níveis do Estado e que preferem não assinar coisas que critiquem algum aspecto da actuação governamental. Sócrates conseguiu.
Mas é também o país do jornalismo domesticado onde não há perguntas incómodas, a terra onde um profissional da informação está impedido de comunicar com os detidos e não protesta contra esse facto. Não se digna, sequer, a levantar a questão.
Via Sardera.blogspot.com
1 comentário:
Realmente é de dar medo! Liberdade de expressão sempre! Nós temos o direito de ir e vir, sem ter que pagar, como criminosos e assassinos! Respeito ao próximo. "Amai vos uns aos outros, como eu vos amei" Palavras do filho de Deus. Não se pode brincar de ser Deus na terra. Dignidade à todos!
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